Tinha 3 anos quando me mudei para Rua Cidade Manchester, a minha casa ficava no número 10, ao fundo das escadinhas amorosas que tão bem caracterizam aquela rua no bairro da Penha de França em Lisboa.
Eu das primeiras vez que fui à praia (Julho 1985)
Não me lembro da mudança de casa, e tenho poucas lembranças da minha primeira morada, nos subúrbios de Lisboa. Da casa de Odivelas (sim, na verdade sou uma saloia) tenho apenas a recordação do meu quarto (interior), de uma porta de foles que ligava à sala, e de ter uma televisão a preto e branco.
Eu quando era "saloia"
Da minha casa na Rua Cidade Manchester tenho muito mais recordações.
Lembro de ter um quarto branco com muita luz, virado para as escadinhas, e que das janelas entravam os ramos da tília velha que existem ao fundo das escadas. E dos seus ramos serem cortados uma vez por ano. Pela Primavera, lembro-me de olhar a rua pela janela, porque os meus problemas do foro alergológico não me permitia apanhar “o pó das tílias”. Lembro-me de coleccionar frasquinhos de vidro com algodão húmido e sementes de feijão e começar a entender o fenómeno da germinação.
As festas de anos eram passadas entre as correrias nas escadinhas e no miradouro, que actualmente está muito degradado. Das festas de anos lembro-me das projecções de slides da Branca de Neve e da Cinderela, de um doce fantástico que a minha mãe fazia com o resto dos bolos das festas, e de coleccionarmos livros de banda desenhada do Luke e Luke e do Tintin, e os famosos “Uma Aventura”, “Os Cinco”, e outros tantos livros que marcaram a nossa infância.
Os fins de tarde eram passados na companhia do Pedro, um miúdo mais velho que o meu irmão uns 2 anos, que viviam no 3.º andar do simpático número 10 da Cidade Manchester. O Pedro era possuidor de uma vasta colecção de brinquedo e jogos, entre os quais o Subuteo e a vastidão de Playmobil. Eu era mais fã do Playmobil, enquanto que o meu irmão era fã do Subuteo. Na realidade eu era fã do Pedro, já que ele protagonizou a minha primeira paixão platónica, mas isso fica para contar noutra oportunidade.
Eu e o meu mano (Diogo) eu devia ter uns 6 anos, e ele uns 8 ou 9
Foi também nesta casa, não sei bem com que idade, que tive o primeiro contacto com a morte. Ou melhor, os primeiros contactos da morte. Não sei se ordem é a correcta ou não, mas lembro-me de acordar com o toque do telefone (daqueles pretos quando ainda se discavam os números, e que faziam o tradicional trim-trim) e pouco tempo depois a minha mãe disse-nos que o Primo Vítor tinha tido um acidente. Lembro-me de imaginar, como se estivesse no cinema, como teria sido esse acidente, e deitada na cama do meu irmão olhava para as portadas fechadas do quarto do meu irmão. Depois (ou antes) foi o meu bisavó, o avó Sebastião (o que me dava rebuçados em forma de hemácias - que contarem num outro post), e lembro-me do meu pai nos sentar, a mim e ao meu irmão, em cada uma das duas grandes pernas e nos contar que o nosso avó estava muito doente., enquanto que eu imaginava o que as pessoas faziam quando iam para o céu. Sei que não fiquei muito traumatizada e que de certo modo tenho boa ideia desses acontecimentos de vida menos felizes.
Mas voltando as recordações mais felizes.
Quando os meses quentes chegavam, e a temperatura mínima durante a noite eram uns 25ºC, saíamos a noite e íamos andar de Cacilheiro, beber refrescos para as esplanadas dos bairros de Alfama, Graça e Castelo.
Em Julho, fazia praia na Costa da Caparica (na Paria do Castelo) e os meus primos mais velhos de Castelo Branco vinham passar uma temporada a nossa casa. Durante este meses, a seguir ao telejornal davam os videoclips da Dina, dos Da Vinci, e outros que tal que tão bem marcaram os finais dos 80’s... A seguir fazia um esforço herculo para ficar acordada e ver os Jogos Sem Fronteiras, apresentados pelo Eládio Clímaco.
Os Da Vinci
Numa noite de Dezembro, a poucos dias do meu 5º ou 6º aniversário, o prédio ao lado (o número 12 na Cidade Manchester) ardeu. Fui acordada a meio da noite pela minha mãe, que me levantou dos lençóis quentes, calçou os primeiros sapatos que apanhou e nos pós na rua. Na rua juntou-se um aglomerado de vizinhos, e no meio da confusão e do meu metro de altura perdi-me da minha família, alguém me deu um blusão de canga para vestir, e assim fiquei a ver o número 12 a arder, enquanto que o meu prédio era evacuado. Pouco depois já estava de novo nos braços da minha mãe, e umas horas mais tarde no braços do meu pai. Sei que nessa noite as minhas preocupações se resumiam a um vestido que a minha mãe me tinha comprado para a festa do meu aniversário, e com a possibilidade do precioso vestido ficar resumido a um monte de cinzas. Pouco depois, lembrei-me dos meus peluches que poderiam ter o mesmo destino que o vestido, e no que seria a minha pessoas sem o grande elefante amarelo, o Jorge. Foi mais ou menos neste turbilhão de emoções que fiquei a saber que existem seguradoras, seguros e apólices, explicados delicadamente (como a situação exige) pelo meu pai, a mim e ao meu irmão.
No dia seguinte ao incêndio, vi com tristeza os moradores do número 12 a retirem o que restava dos seus bens: um triciclo, uma mesa de cabeceira, quadros, ...
Infelizmente, o prédio ardido demorou bastante tempo a ser recuperado e agravavam-se os problemas associados à degradação do edifício, que rapidamente se alastravam ao nosso número 10, em especial para os apartamentos que ficavam “colados” ao número 12 (como era meu caso). Assim algures num mês quente (não sei se fins de Maio, ou princípio de Junho) mudei novamente de casa.
E mais uma vez empacotamos as nossas recordações em caixotes de papelão.
Infelizmente houve muita coisa que não conseguimos trazer connosco.
Como a Rua Cidade Manchester.